Restrição ao uso de telas em escolas divide especialistas no Brasil e EUA

Cresce o veto ao uso de dispositivos eletrônicos em salas de aula, e, em alguns casos, a restrição atinge até mesmo professores e pais na hora de se ajudar com o dever de casa

No Jardim-escola Michaelis, em Botafogo, no Rio, educadores privilegiam as atividades físicas e musicais e deixam de lado o uso de computadores, considerados prejudiciais à interação humana e à atenção dos estudantes

RIO – O movimento dos sem-tela chegou ao parquinho. Cresce o veto ao uso de dispositivos eletrônicos em salas de aula , e, em alguns casos, a restrição atinge até mesmo professores e pais na hora de se ajudar com o dever de casa. As ações do “MST da educação” seguem recomendações de peso. A Organização Mundial de Saúde (OMS) divulgou, em abril, orientação condenando o uso de telas por crianças de até 1 ano de idade. Já a Sociedade Brasileira de Pediatria defende o uso restrito por menores de 2 anos.

Em Botafogo, no Rio, o Jardim-escola Michaelis, por exemplo, bane celulares e equipamentos eletrônicos, inclusive entre os funcionários. Por lá é adotada a pedagogia Waldorf, “focada em atividade física e aprendizado, através de tarefas criativas e práticas”. Escolas que seguem a cartilha do método que completou um século este ano têm entre seus alunos, curiosamente, os filhos de profissionais do Vale do Silício e do setor tecnológico.

Para os educadores do Michaelis, computadores inibem o pensamento criativo, o movimento, a interação humana e os períodos de atenção das crianças. Já na Escola Waldorf da Península, na Califórnia, filhos dos funcionários de gigantes da tecnologia como Google, Yahoo, HP e Apple têm sido escolarizados longe da tecnologia.

O administrador da instituição, Pierre Laurent, que também é cientista da computação, defende que a tecnologia não deve estar presente no cotidiano infantil. Antes, ele diz, a criança precisa desenvolver plenamente as capacidades humanas para que possa se relacionar melhor com os outros:

— Temos 450 alunos, 75% deles filhos de altos funcionários de empresas de tecnologia. São pais e mães que não tiveram contato com a tecnologia em seu cotidiano quando eram crianças e mesmo assim, hoje, ocupam cargos de destaque na área — diz Laurent, que acrescenta: — Eles avaliam que a capacidade humana de se relacionar, com resiliência, espírito colaborativo e empatia, foi muito mais determinante na formação deles e querem que seus filhos desenvolvam essas capacidades.

Inaugurada em 1984, uma de suas principais singularidades é justamente a de escolarizar sem o uso de tecnologia digital. Para Laurent, o interesse dos pais no método não se resume em restringir o acesso das telas aos filhos:

— Você não desenvolve capacidades humanas interagindo com telas de computador mas, sim, com pessoas, com o mundo real.

Thomas Hamser, diretor de uma empresa do setor tecnológico em São Paulo, estudou em uma escola Waldorf e decidiu estender a experiência aos três filhos. Seus filhos tiveram contato com a tecnologia digital desde pequenos — sempre, no entanto, ele frisa, com moderação. O caçula, de 13 anos, não tem celular por iniciativa própria.

TABLETS DESDE O BERÇÁRIO

Outras escolas entendem que a utilização de ferramentas tecnológicas sob supervisão pedagógica trazem benefícios às crianças. É o caso do Centro Educacional Miraflores, em Laranjeiras, no Rio, especializado em educação infantil a partir de quatro meses de idade. A escola inclui robôs e tablets como apoio à aprendizagem dos alunos “desde o berçário’’.

Taíla Lourenço, coordenadora pedagógica, explica que lá os bebês já têm acesso, mesmo que por um breve momento do dia, a esses recursos, guiados por um docente.

— Usamos tablets não só para ver vídeos, mas trabalhar conteúdos — diz Taíla, que rebate qualquer prejuízo no desenvolvimento das relações sociais dos estudantes: — A tecnologia, se for inserida de uma maneira pertinente para a faixa etária e com objetivo claro, não atrapalha de forma alguma.

Taíla lembra que a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), documento já aprovado pelo Congresso Nacional com os conteúdos mínimos das escolas brasileiras, defende a necessidade da tecnologia em sala de aula.

Na Competência 5, o texto afirma que o aluno deve sair da educação básica com a capacidade de “compreender, utilizar e criar tecnologias digitais de informação e comunicação de forma crítica, significativa, reflexiva e ética nas diversas práticas sociais (incluindo as escolares) para se comunicar, acessar e disseminar informações, produzir conhecimentos, resolver problemas e exercer protagonismo e autoria na vida pessoal e coletiva”.

SEGURANÇA E PRIVACIDADE

A Escola Eleva, que tem duas unidades no Rio e uma Brasília, também utiliza tecnologia para auxiliar o aprendizado de crianças a partir dos 5 anos. De acordo com Cristiane Sanches, coordenadora de Tecnologia Educacional e Inovação do grupo, a partir dessa idade os alunos fazem atividades pontuais, como em realidade virtual ou aumentada, até 20 minutos por dia, uma vez por semana. Depois, no ensino fundamental, usam tablets individualmente ou em grupo em atividades de até 50 minutos.

— Só usamos a tecnologia quando se tem um propósito claro, não só por prazer, e sempre com a perspectiva de segurança e privacidade. Usamos material do Nic.br (Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR, criado para implementar as decisões e os projetos do Comitê Gestor da Internet no Brasil) com orientações norteadoras do uso — afirmou Cristiane.

A psicóloga especializada em tecnologia Luciana Nunes orienta os pais a manterem os filhos distantes das telas até os três anos. Depois, até os seis, o acesso se limita a, no máximo, duas horas por dia. Também perita em crimes cibernéticos, ela defende a medida como proteção ao processo de formação da criança:

— O desenvolvimento natural do ser humano não contempla a interação tecnológica integralmente. Até os três anos, a criança precisa ter contato apenas com quem cuida dela. Dos três aos seis, o contato com a tecnologia é natural, mas é preciso que ela desenvolva nessa fase habilidade sociais e ferramentas de enfrentamento social, algo que as tecnologias não oferecerão.

Detox Digital - O GLOBO