A fundação do Jardim-Escola Michaelis RODA DE CONVERSA COM SUA PRIMEIRA PROFESSORA, PAULA LEVY, COM CONTRIBUIÇÕES DAS MÃES FUNDADORAS.

Texto: Fernanda Sansão Hallack (Transcrição na íntegra da palestra ministrada no dia 22/09/18) Psicóloga,  mãe de dois filhos do Jardim-Escola Michaelis.
O importante não é a perfeição com a qual conseguimos realizar o que deve provir da vontade, e sim que o que tiver de surgir nesta vida, por mais imperfeito que venha a parecer, seja feito uma vez para que haja um começo.
Rudolf Steiner
Paula Levy:  Boa noite. É uma grande alegria poder reviver e compartilhar como foi a fundação do Michaelis. É também é uma alegria ver que ele continua aqui firme, com vida e atendendo a tantas famílias, tantas crianças. Eu começarei este relato expressando a gratidão por aqueles que hoje cuidam do Michaelis. E, durante o relato, eu vou expressar gratidão por aqueles que conseguiram trazê-lo ao mundo.  Eu remexi o baú das memórias, trouxe algumas coisinhas para mostrar para vocês. Aos que participaram dos momentos, fiquem à vontade para compartilhar. Eu vou “tirar do baú” relembrando os momentos históricos. Não imaginei que ia ser um relato oficial, achei que ia ser uma conversa com a Comissão de Comunicação da escola. Quando eu vi o comunicado à escola, eu pensei: “Então eu vou estudar como foi esse nascimento (risos)”.
Eu me lembrei de uma pequena história de um homem que sempre pedia para o pai “começar o começo” da tangerina: “Pai, começa o começo!”. Porque aquilo de você “começar o começo” fazendo o primeiro furo, aquilo é muito difícil. E a criança pequena não consegue normalmente. Mas se você faz o primeiro furo, aí parece que tirar o resto das cascas se torna um pouquinho mais fácil.  Esta imagem é preciosa para vocês. Principalmente para os que não estavam lá (no período da fundação) terem noção de como foi “começar o começo”. E como foi “começar o começo” do nada. Porque hoje a tarefa é árdua e a casca continua dura. E o que a gente sentiu na pele é que no Rio de Janeiro a casca dessa tangerina é muito dura. Mesmo que ela seja muito doce. Mas não é fácil descascá-la, de acordo com os relatos da primeira, da segunda, da terceira, da décima geração... A gente nem sabe em que geração mais (a Escola) está (agora) 25 anos depois. É uma iniciativa já madura.  Tenho certeza de que tem muitas cascas a serem descascadas. Mas é sempre importante que a gente guarde enquanto instituição, que a gente vele e zele para que essa memória, o “começo do começo”, nunca se perca. Porque nele surge o olho d’água a partir do qual o leito vai se formando aos poucos. A gente não pode nunca deixar que esse olho (d’água) seque. Porque ele vai internamente jorrar vitalidade para a instituição, se esta souber carregar na sua alma essa imagem, esse arquétipo do que  ocorreu há 25 anos. Quais foram os intentos, quais foram os impulsos que conduziram à fundação?
Agora eu vou passar para os acontecimentos, daí a gente vai colhendo juntos os significados desses acontecimentos. E vocês perguntem, fiquem à vontade, eu prefiro que seja uma conversa, não uma palestra. Havia na rua em que a Milka comprou uma casa, na rua Carlos de Laet, na Tijuca, um Jardim de Infância particular de uma pessoa chamada Elisabeth Soares. Ele se chamava Arte no Quintal e ela fez um trabalho ali bastante intuitivo. Ela era a dona e ela cuidava dos mínimos detalhes. Ela realmente plasmou um ambiente e um trabalho pedagógico fantásticos. Com muita sensibilidade. Então quem entrava naquela casa, uma bonita casa na Tijuca, daqueles casarões antigos, um pouco até como este, mas com uma mangueira, um quintal de terra...
Quem entrava sentia que atravessava um portal que ia ao encontro de uma infância verdadeira para seus filhos. De uma infância com a possibilidade de muito brincar, de muito respeito, de muito cuidado, de muito carinho e de aconchego. Ela vinha desenvolvendo esse trabalho intuitivamente, sendo guiada pelo coração.
Até que chegou o momento em que ela sentiu que faltava algo. Ela precisou de um amparo maior, porque ela tinha ido até os limites do que dizia o coração dela de mãe sobre o que seriam as necessidades das crianças. Ela sentia que aquilo ainda podia ser mais investigado. Foi nessa busca que ela encontrou a Antroposofia. Ela começou a estudar com uma antropósofa que já faleceu, a dona Livia Landsberg, e foi se encantando pela Antroposofia e a Pedagogia Waldorf. Foi quando ela falou que gostaria de permear o Arte no Quintal com a Pedagogia Waldorf, mas ela não tinha a menor noção da prática pedagógica. O que ela conhecia era a  mera teoria. Então ela começou a procurar, a conversar com um e com outro se tinha algum professor com alguma experiência que quisesse vir para o Rio de Janeiro.
Estamos falando de 1991, quando ainda nem existia internet. Não era tão fácil procurar um professor, não existia Federação das Escolas Waldorf, só existia um seminário no Brasil. Aliás, acho que já tinha aberto outro (seminário). Mas era tudo mais difícil naquela época e o movimento de Pedagogia Waldorf era pequeno, era restrito. Ela foi tão perseverante que acabou sabendo que havia uma professora Waldorf em São Paulo que tinha a intenção de mudar para o Rio de Janeiro por questões pessoais. Ela (a própria Paula, no caso) tinha um namorado no Rio de Janeiro. Isso teve um papel decisivo (risos dos presentes).

Vocês vão ver que tem muito amor o tempo inteiro na história do Jardim Michaelis do Rio de Janeiro. Ela (a história do Michaelis) tem muitas dificuldades, mas tem também muito amor. Tem um fio de dificuldades árduas que foram sendo vencidas. Um fio de espinhos e outro fio de seda de muito, muito amor que foi impregnando nosso caminho.

Então, em 1991, a Elisabeth fez contato comigo, não havia Whatsapp (risos dos presentes), ela teve dificuldade de fazer o contato. Eu senti muito amor, senti muita verdade na busca dela, muitas boas intenções. Eu disse: “Se quiser vamos correr o risco”. Fiz as malas e vim. Vim para o Rio com esta missão de ser professora e trazer a Pedagogia Waldorf.
Fundadora: A Bete foi tão investidora da pedagogia, que ao mesmo tempo em que ela fazia esse trabalho difícil de “captar com o coração”, ela também fez um trabalho conosco, com os pais, para saber se a gente aceitaria mudar a proposta pedagógica. E eu não me    lembro de ninguém ter ido contra essa proposta. Ao contrário, a gente rezava para que a Paula aceitasse. A Paula era uma semente. Fez um trabalho muito, muito forte.Paula Levy: Ela (Elisabeth) era uma educadora nata. Daí eu vim e a gente fez esse trabalho no Quintal, mas as coisas não foram fáceis. Porque, ao mesmo tempo em que havia muita sensibilidade pedagógica, muita abertura por parte das famílias que estavam lá, a Bete começou a enfrentar muitos problemas administrativos, financeiros e na vida pessoal. De alguma forma, ela foi se desvinculando do que estava acontecendo, foram surgindo outros chamados urgentes na vida dela. E o que nós presenciamos, principalmente eu que tinha vindo com muita esperança, foi um ano de muito fenecimento. Um ano em que aquele trabalho, ao invés de florescer, começou a murchar. E isso também é interessante. Algo que já existia foi murchando, foi morrendo para que surgissem frutos com novas sementes.  Mas não é fácil viver isso. Foi um ano bem doloroso, de muitas instabilidades em todos os níveis. Eu me lembro que eu fiz uma horta com as crianças, não nasceu nada na horta. E era um quintal lindo, tinha bichinho, e a gente via que a cada momento definhava alguma coisa. No segundo semestre, o período da tarde teve que ser fechado, não tinha número suficiente de crianças para bancar os dois períodos. Agrupamos todos no período da manhã. Até que, finalmente, ela (Bete) teve coragem e nos disse: “No fim do ano eu vou fechar”. Os funcionários choravam, eu estava muito tensa: “Nossa, mas como a gente vai fechar?” A Bete estava muito, muito triste, e os pais também. Porque nesse meio tempo a gente havia começado um grupo de estudos. Então eles estavam vendo gradativamente a transformação de um trabalho caminhando para a Pedagogia Waldorf, para essa essência antroposófica. A gente estava desde o primeiro semestre estudando, as mães fizeram uma boneca naquele ano. A gente estudava a natureza anímica da criança. Então estava todo mundo muito empolgado.  Daí as mães se reuniram e começaram a procurar desesperadamente um novo espaço para tentar mudar para uma nova casa. Procuraram, procuraram, procuraram e não encontraram nada. Já pairava no grupo a ideia: “vamos partir para uma associação!”.  Não conseguimos. Foi um período muito significativo desta instituição. Veio o Natal, o Arte no Quintal fechou, todas as famílias se despediram com muita tristeza. Das lembranças que eu tenho do meu diário da época, mas com certeza vocês do grupo de mães devem recordar mais detalhes, foi de que até fevereiro (do outro ano) algumas mães não tinham matriculado (seus filhos) em outra escola. Na esperança de que ainda surgisse alguma solução divina que fizesse aparecer uma casa. Mas daí elas falaram: “Não! A vida das crianças prossegue”. Então algumas foram para a escola Vivendo e Aprendendo, da linha freinetiana, outras foram para a escola dos irmãos... Todos tinham que tocar a vida.
Fundadora: Você não está dizendo que a sua participação neste grupo foi determinante! Você trazia as artes para a gente, a gente fazia bonecos, a gente aprendia a cozinhar, várias coisas que se formaram nessas mães tiveram a sua participação. Eu tenho certeza
Fundadora: Foi fundamental. A gente escutava. Começou uma escola Waldorf ao mesmo tempo em que se formavam pais Waldorf. É interessante isso, nunca tinha pensado. Porque a escola não era Waldorf, nem nós. Foi ao mesmo tempo. Quem alinhavou este caminho foi a Bete e depois a Paula.  
Paula Levy: Quando eu olho hoje, fico abobada.
Eu tinha 25 anos, não tinha filhos. Com 25 anos, eu tinha pouca experiência, mas eu tinha vontade e reconhecia na Antroposofia um caminho fantástico de conhecimento. Eu acho que o que foi unindo a gente foi a abertura de cada uma de vocês para conhecer esse caminho, eu fui só um instrumento para que vocês pudessem beber na própria ciência espiritual antroposófica. Principalmente no aspecto pedagógico. Porque o núcleo essencial da Antroposofia vai chegar um pouco depois. Daqui a pouco a gente chega lá.
Eu até anotei que quando foram para outra escolinha algumas mães mencionaram que as crianças adoeceram. Elas ficaram preocupadas. Acho que, claro, a criança capta o que está no coração dos pais. Ficou assim.  Na Páscoa, a gente reativou o grupo de estudos, mas só com o objetivo de estudar, de trocar ideias... Já que não dava para ter um jardim Waldorf, que cada casa pudesse ser Waldorf. E que cada família levasse para seu grupo o que fosse possível. Então a gente se encontrava. Eu anotei aqui. Que bonito esse trecho porque ele tem a ver com o fio de amor:
“Uma forte amizade surgiu entre as pessoas deste grupo e estas crianças. Algo especial que nunca observei antes. Brotou no seio do grupo uma grande solidariedade.” Isso começou a ser o bálsamo para o trabalho em si. Surgiu um lastro de confiança que fez com que a gente fosse capaz de fazer algo comum, algo que fosse difícil, algo que não é cotidiano.
Hoje, eu brinco, abrir jardim Waldorf no Brasil afora é igual pipoca que arrebenta na panela. O que causa até temor. Mas a gente está falando de 25 anos atrás. A gente está falando de uma cidade que, até hoje, em minha opinião, continua sendo a mais desafiadora para a Antroposofia e a Pedagogia Waldorf.
Por isso, é lindo ver que esta luz continua acesa aqui dentro. Que vocês estão conseguindo velar por este impulso que foi plantando numa terra muito dura. Foi muito difícil cavar. E a gente vê que o crescimento desta escola é lento, é desafiador, a gente leva o dobro do tempo para fazer o que outras escolas fazem. Claro, sempre há luta em toda escola Waldorf.  Mas aqui a luta parece que é em dobro.  
Então este era o grupo: a Dora, mãe do Marco Antonio; a Zuleide, mãe da Beatriz; a Rosana, mãe do Caiã; a Marta, mãe do Pedro; a Claudia, mãe da Diana. E, também, estas mães que não conseguiam ir aos encontros, mas trabalhavam e estavam junto conosco: a Milka, mãe da Luiza; a Cátia, da Julia; a Elaíse, da Taissa; e a Claudia, da Nanda, nesta época ainda estava por perto. Daí, gente, num belo dia, a Dora, do Marco Antonio, entrou em crise e falou que ia tirar o filho da escola porque estavam começando a alfabetizar o Marco Antonio. E a gente falou. “Dora, relaxa, calma”. E ela falou: “Eu vou tirar, porque nós vamos encontrar um lugar. Eu não deixo mais meu filho ali”.
Eu acho que esse ato de coragem da Dora também foi muito decisivo, faz parte da história desta comunidade. Daí ela o tirou (da escola) e começou a procurar lugares que nem louca pela Tijuca. E não é que ela encontrou? Ela encontrou uma casinha na Avenida Maracanã, uma casa bonita também, onde funcionava uma escola de artes que se chamava Oca. Era uma oficina de criações artísticas dirigida por jovens, na qual entrava pouco dinheiro. Tinha o quintal, uma edícula com uma escadinha e um banheirinho no quintal. Eles concordaram em sublocar esse espaço.  O grupo começou a debater:“ Será que vai dar, será que não vai dar...”Daí ela (Dora) levou a gente para conhecer a casa e a gente começou a achar que podia ser interessante. Era uma sala minúscula, metade desta, sala pequeníssima, um quintal pequeníssimo, tinha uma escada, um banheiro que era um “ai meu deus” (risos dos presentes), mas o desejo de pôr essa semente no mundo era tão grande em todas nós que nenhuma teve coragem de dizer que era uma loucura. A gente falou...
Fundadora:  Mas tinha quintal!
Paula Levy:  Tinha um quintalzinho (O carma do Michaelis que tem pouco quintal!), mas, enfim, falamos, vamos tentar! Daí, eu fiz uma proposta pedagógica, eu falei: Ninguém tira o filho da escola, a gente não sabe se vai dar certo. Vamos fazer uma colônia de férias. Estávamos em abril. Combinamos assim: em maio e junho a gente reforma o espaço, a gente permeia. Porque tudo estava caindo aos pedaços. A gente vai deixá-lo habitável. Em julho, as crianças vêm para uma colônia de férias. Se a gente vir que a dinâmica do dia a dia funciona...Tinha uma escada, eram crianças do primeiro setênio. Vamos ver. Dependendo, em agosto a gente passa para a etapa de implantação definitiva. E assim foi. Fizemos assim. Deu tudo certo. Entre maio e junho essas mães trabalharam desesperadamente ali e ficou lindo! Ficou um espaço que a gente não acreditava porque ele era aconchegante. Tudo pequenininho, mas ele tinha vida, tinha etérico ali.  Tinha um pequeno detalhe que era complicado. Não tínhamos uma entrada independente. Para chegarmos no nosso paraíso particular dos fundos, a gente tinha que passar pela Oca. Como o trabalho de atividade artística deles não tinha decolado, à noite eles davam festas para arrecadar dinheiro para pagar o aluguel. A casa não era deles também. Tinha uma mãe que chegava muito cedo, a Zuleide. Normalmente nós duas entrávamos, abríamos a porta e íamos recolhendo as garrafas de cerveja que estavam jogadas na casa. Porque eram festas bem pesadas. Às vezes, a gente chegava e tinha gente dormindo pelo chão, pelo sofá. E a gente ia, em silêncio, recolhia as garrafas, mas parece que a gente fazia isso com tanto amor, tanto amor, que as crianças conseguiam passar por esse ambiente pesado, por esse astral pesado, comum anjo protegendo cada uma delas.  A gente encontrou uma passagem secreta. Tinha muito lixo lá. Daí nós fizemos um mutirão para tirar o lixo. Mas eu nunca vou esquecer uma reunião que a gente fez com esses rapazes (da Oca). Eles queriam aumentar o aluguel. Mas elas (as mães) eram briguentas, porque era difícil. As nossas contas eram justinhas. Daí chegou uma hora que um deles concordou que (o aluguel) não devia aumentar.
Ele falou que admirava muito o trabalho que a gente estava fazendo. Porque era comovente. Porque a gente estava sempre lutando, sempre depurando aquela astralidade. Incansavelmente, todas as mães sempre estavam lá, limpando aquele quintal, pintando, trazendo uma flor. De noite, a coisa degringolava. E a gente de novo, e de novo.
Daí um deles falou que nos admirava muito, pois nós éramos a “flor de lótus no pântano”.
Fundadora:  Eu não sabia dessa parte. Inclusive Tijuca quer dizer “Terreno alagado”. A Tijuca quase toda era alagada. Tem esta correlação.

Paula Levy: Nós nascemos flor de lótus, entendem? Isso tem um significado espiritual profundo que a instituição nunca pode esquecer.

E eu, naquela juventude, vendo aquele grupo de mães pioneiras, fiquei me sentindo muito insuficiente para alimentar aquele grupo. Porque é a tarefa do professor! Então eu comecei a pedir ajuda.
E estávamos naquela mesma época (sem internet) em que não era fácil conseguir ajuda. Eu me dirigi aos antropósofos do Rio de Janeiro, que eram poucos, mas obtive muito pouca ajuda. Não foi tão fácil. Uma amiga veio de São Paulo, uma professora Waldorf mais experiente, visitou o espaço, eu contei toda a dificuldade que a gente enfrentava diariamente. Ela olhou para mim e disse: “Você é louca! Como você está fazendo um jardim Waldorf nessa situação?”
Eu olhei para ela e tive a certeza, como um raio no meu espírito, e falei: “Qual a opção, é não fazer? Se for não fazer, nós vamos continuar fazendo”. Nessas condições, o que nos foi dado foi isso e nós não vamos desistir. Elas não desistiram, não desistiram em momento algum, como eu ia desistir? Então uma ajudava a outra, o espírito de grupo estava ali, isso também não pode ser esquecido. Esta instituição nasceu com um lastro de solidariedade inimaginável.  
Nessa busca de ajuda, eu conheci a Daisy Cabrera, que era uma estudante ativa da Antroposofia aqui no Rio. Ela era a aluna querida da dona Livia Landsberg. Eu falei para ela: “Daisy, vem, faz você o grupo de estudos com as mães porque o que eu sei está insuficiente para alimentá-las”. Ela disse que não podia, que era na Tijuca...
Até que eu tive um sonho:que eu tinha tido neném e que eu pedia para ela ajudar a dar de mamar para esse bebê. Contei para ela o sonho e na hora ela falou: “Então eu vou! Conte comigo porque agora o mundo espiritual está me chamando”. Ela foi muito acolhida e foi um grande pilar para a gente.  
O Jardim Michaelis nunca teve muita ajuda. Espero que hoje isso tenha mudado. A gente remava sozinho. A gente não tinha o amparo dos que podiam contribuir com guarda espiritual, contribuir com dinheiro, com simpatia, contribuir com um abraço. E a gente foi lutando ali como podia. E a Daisy abraçou. Ela nos abraçou plenamente e se vinculou de tal forma que ela passou a carregar os destinos deste Jardim, a se responsabilizar e a apoiar. Isso era 1993.  O Jardim nasceu na colônia de férias de julho de 1993 e em dezembro eu fiquei grávida. E aí nos perguntamos: “Como vamos fazer?"

Importante falar disso. Este é um dado que eu gosto: Quando a gente estava procurando imóvel, eu estava para casar e procurando casa para morar. A Zuleide falou: “Paula, porque você não faz na sua casa? Faz o seu Jardim e a gente se matricula lá”. Eu disse: “Não, Zuleide, não vou fazer. Porque o meu desejo e o do grupo é que o Jardim não tenha dono. Esse é o caminho mais fácil, mas a gente vai fazer o mais difícil. O importante é que a gente funde um Jardim que não seja nosso. Que ele possa viver nessa cidade como um templo da educação para todas as famílias que nos anos futuros também desejarem esse impulso para os filhos deles”.  E assim fizemos.

Eu fiquei grávida, conseguimos que a Dinah Melo assumisse o trabalho e eu me afastei. Era uma turma única. Eu não estou falando os nomes das crianças... Tem tanta coisa bonita! Enfim, senão a gente não encerra este relato... A gente fundou porque lá no mundo espiritual eles disseram que queriam esse impulso. Nós apenas obedecemos e realizamos. Eles foram os grandes pioneiros. Eu fiquei um ano com a turma. A Dinah assumiu. Não dava mais para ficar na Tijuca. A Daisy articulou e saímos desse ambiente degradado, em termos de astralidade, e fomos para o alto da Glória, na Comunidade de Cristãos do Rio de Janeiro.

Parece que o mundo espiritual ouviu de alguma forma aquela oração diária de não desistir, de trabalhar, de fazer o que era possível fazer. É isso que eu acho que também pode ser o legado para a comunidade atual que carrega esta escola. Não desistir. Não desistir nunca. Faça o que pode ser feito, mas faça com amor e idealismo. Vocês podem se orgulhar de que esta instituição nasceu com idealismo mais puro, mais genuíno, foi um diamante. Nem todas as instituições nascem assim. Às vezes o idealismo tem que vir depois para consertar muita coisa. Nesta (instituição) não. A gente tem isso.

Fundadora:  Apesar da astralidade, as crianças deram nome para a escola: Castelinho. Porque elas enxergavam de outra forma. Era o conto de fadas delas.
Paula Levy: A gente fazia envoltório. Era lindo. Mas eu acho que não foi só a gente, foram os anjos. A gente não teve ajuda aqui, prática, mas a gente teve ajuda de seres espirituais que ficaram com pena. Eles falaram “Gente, não é possível, eles não vão desistir! Alguma coisa a gente vai fazer por eles” (risos dos presentes).
Professora Thassia Porto:  A escolha do nome foi nessa época?
Paula Levy:  Não tinha nome. O Jardim ficou dois anos sem nome. Era Castelinho para as crianças. Nós estávamos preocupados em fazer o trabalho que tinha que ser feito. Vejam isso aqui: são curiosidades, mas eu achei que podia ser gostoso. Não existia impressora também na época (risos dos presentes). Muita coisa era diferente. Este foi o calendário de atividades que eu entreguei na matrícula, em maio de 1993, junto com um trecho da Pedra Fundamental por escrito. E uma homenagem ao (Jardim) Arte no Quintal.
Eu escrevi aquele trecho do Steiner: “De fato, nada surge do nada, mas uma coisa pode transformar-se a ponto de morrer para que outra surja”. Porque a gente tem que ser capaz de honrar as nossas raízes. Isso foi uma frase que eu aprendi com a Daisy. Se a gente não for capaz de honrar nossa história, nosso passado, a gente não vai ser merecedor do futuro.  
No dia que a gente estava inaugurando, nos nossos corações, a Bete estava com a gente. E a gente sabe bem que nesse “entregar o cajado”, o cálice, de uma geração para outra, às vezes surgem atritos de todos os lados. A gente sabe que às vezes quem está com o cajado se apega tanto a ele que não quer entregá-lo totalmente. Não é?

Mas é importante a gente sempre lembrar que esta é uma instituição que tem esse compromisso com a comunidade, com a vida social, em trazer um impulso diferente para a humanidade. Aqui, a gente tem que conseguir se entender. Aqui, a gente tem que conseguir dialogar. Aqui, a gente tem que sair do nosso ponto de vista e olhar outros ângulos.

Já mesmo no Arte no Quintal foram chegando vários outros que foram arregaçando as mangas, impulsionando, que foram se harmonizando com essa comunidade que crescia. Em 1998, a Denise Domingues chegou e assumiu o trabalho porque a Dinah optou pela carreira artística. Foi uma excelente professora. Por um tempo, ficamos sem professor. Até que encontramos a Denise, uma carioca que estava voltando de Mirantão (RJ), onde trabalhou numa comunidade. Também uma excelente professora, com tarimba no trabalho social porque veio da escolinha e da rede pública de Mirantão.
E, de novo, houve um ato de coragem. O Jardim Michaelis estava lá no alto da Glória, mas não tinha mais alunos. Ela falou: “Eu venho com meu filho e vou começar a limpar, a podar as plantas e quem quiser que venha também!”. Ela vivificou o Michaelis.
Eu estava em casa tendo filhos. Porque eu tive três nesse período.  Vocês lembram que eu falei daquela mãe que tirou o filho (da escola tradicional) porque ela não queria que ele fosse alfabetizado? Ela falou: “Eu vou procurar!”. É esta criança que estou passando a foto.

A gente deve muito a esta criança específica. Em 1994, ela (Marco Antonio) ficou doente. Ele ia ao nosso Castelinho, a gente tinha uma imagem de Micael e ele fazia carinho, carinho, naquele arcanjo.

Ele começou a apresentar muitos sintomas, dores, medos... Ele estava com câncer da supra-renal. E o Marco Antônio faleceu. Ele ainda foi para o alto da Glória, mas com muitas internações, ele não resistiu. A urgência dele por esse impulso da pedagogia antroposófica na sua biografia moveu a gente. Ele tinha pressa. Não dava para demorar tanto. Que bom que a mãe dele teve sensibilidade. Ele não foi alfabetizado. Ele foi direto para o céu. Porque depois que a gente é alfabetizado tem escalas. O pai dele conseguiu comprar um celular. Estava começando a ter celular. Nessa época, celular era só para gente rica. Ele comprou (um celular) e foi na Festa da Lanterna para gravar a gente cantando para o filho poder ouvir. Eu nunca vou relatar esta história sem fazer homenagem a ele. O Jardim-Escola Michaelis tem um de nós no céu. Espero que seja só ele. Espero que a nossa comunidade não tenha (no céu) outros tão jovens.
Fundadora:  Ele promoveu uma união maior no nosso grupo. A gente lutou muito, ele chegou a ir para um tratamento no exterior, a gente conseguiu que ele fosse recebido pelo Jô Soares para divulgação, para o transplante de medula. Ele foi para o exterior. Cem mil reais na época a gente conseguiu. Aquilo nos uniu, fortaleceu anos nossa união, extrapolou tudo: pedagógico, escola e tudo o mais...
Paula Levy:  Campanhas... Muito doloroso isso.
Fundadora:  E as crianças terem que lidar com a perda do coleguinha. No enterro do Marco Antonio, ela pediu para a gente cantar as músicas da Lanterna. A gente cantou. Foi lindo.
Paula Levy:  É importante como comunidade não esquecermos que tem um de nós lá. Este é um desenho dele, eu fiquei tão feliz. Nossa (eu pensei), que bom que ele tem a imagem completa de ser humano nele! Achei lindo este desenho. Guardei, guardo até hoje. Tenho de todos (os alunos), mas só trouxe este.
Sobre o nome (Michaelis), eu vou deixar este desenho aqui com vocês. Dizem que a gente vai ficando velha e tem que começar a desapegar. É um treino para a morte. A gente tem que começar a se desfazer. Às vezes, o que é mais caro não é o patrimônio material, mas o que está em nossos baús. Esses que nos são tão caros.Vou deixar porque talvez tenham uma biblioteca e, com 25 anos de história, precisam começar a documentá-la. Juntar os arquivos históricos. Daqui a pouco teremos 50 anos
Professora Alessandra Miguez: Justamente sobre a memória, nós (professoras) do Fundamental fizemos um trabalho de resgate. Abrimos nossas reuniões com o livro do aniversário de 2005. Tem relatos e desejos de algumas mães que estão aqui e o seu também. Abrimos as reuniões de terça-feira (do Fundamental) com a leitura do desejo da Daisy, porque ela abriu esse livro, já lemos o seu também. Está lá em cima guardadinho. Tem desejos muitos potentes, muito amorosos. Gratidão enorme a quem veio antes de nós. Estamos aqui, não somos perfeitos. Coragem:é a palavra que nós usamos para continuar carregando essa chama. E o desejo de que os que venham depois de nós, quando já não estivermos aqui, também possam carregar essa chama.
Paula Levy:  Vocês têm tarefas árduas pela frente. A gente “começou o começo”. Mas quando você vai descascar a tangerina não têm pedaços da casca que estão mais grudados? Eu diria que a geração atual está diante de um pedaço assim.

Então, a missão de vocês é difícil. E vocês vão ter que ser muito guerreiros. Muito. Mas para a gente é muito lindo ver que vocês estão aqui. É muito especial. Porque nasceu para isso. Para ser de todos. E não para ser nosso.  Aqui, gente, a fundação: no dia 30 de setembro de 1995 houve o batismo de nossa iniciativa. Foi uma carta que fizemos para comunicar ao mundo que nós tínhamos agora um nome.

Notem como tudo é lento nessa iniciativa. Até para ter um nome. Foi o único nome que surgiu. Foi a Daisy, não foi, que saiu com essa (do nome). Ela sonhou?

Fundadora:  Ela apresentou o sonho. Era um sonho com Micael, estava na época de Micael, e ela falou, quem sabe o nome é esse? Aí todo mundo abarcou.

Professora Thassia:  Ela falou para a gente também que veio de um sonho, mas de uma mãe.
Fundadora:  Tem tudo a ver. Micael tem tudo a ver com tudo aquilo que a gente vivenciava e com tudo aquilo que a gente queria de proteção.
Paula Levy: Teve uma coisa muito engraçada, que não sei se vocês lembram. Ela consultou uma amiga que estudava Letras para saber o que o sufixo (da palavra “Michaelis”) significava. Ela (Daisy) falou: Ela (a amiga)me disse que Michaelis significa“ aqueles que pertencem a Micael”. No outro dia, ela (Daisy) falou: “Olha, ela se enganou: “São aqueles que chamam Micael”.  Então dificultou mais porque a gente já queria estar incluído como“aqueles que pertencem” (risos dos presentes). Mas não descobrimos qual seria esse sufixo (de estar incluído). Então ficou este (nome) mesmo. Foi a Sabine que fez o logotipo, que usamos até hoje.
Fundadora: Inclusive tem até uma placa de madeira guardada aqui.
Paula Levy:  Mas olha a carta. É muito engraçada. Tem a letra da Daisy.
“Queridos amigos. No dia 30 de setembro, houve o batismo de nossa iniciativa que há dois anos e meio caminhava sem nome”.  
Paula Levy:  Dois anos e meio! Em 2000, a gente fundou a APAM.
Participante:  Aí eu cheguei.
Paula Levy: Eu já tinha voltado, eu reassumi a sala de Jardim. E mais uma mãe, a Cristina, a Cátia, a Márcia, várias mães que se tornaram professoras. Uma inclusive se mudou para São Paulo e fundou um Jardim lá, a Fernanda. A Teresa também. Tiveram os pioneiros da primeira geração. A Denise é da segunda geração. Teve a terceira geração que saiu da Glória e foi para a rua João Afonso.

O que é importante? É sentir que cada época específica tem uma tarefa específica.

A nossa, que estava lá na Tijuca, foi fundar, foi ter a coragem de “começar o começo”. Depois tiveram outros desafios. Foi de novo uma fundação iniciar o ensino fundamental. Olha quando nós conseguimos! Eu já não estava mais. Eu me desliguei e fui para São Paulo. Fui porque eu lutei, lutei, lutei no ano de 2004 para que abríssemos o fundamental, e não abrimos, não houve força para isso. Então eu falei: “Agora vou oferecer uma escola Waldorf para meus filhos e fui para São Paulo”. E só foi aberto em 2009! A gente vê jardim Waldorf começando e em três anos já vão para o Fundamental.

Então, aqui a gente precisa ter muitos guardiões porque parece que o castelinho a gente constrói, o mar vem de noite e desfaz. Você constrói de novo, ele vem e desmancha. A gente tem que fazer e fazer mil vezes. Mas em 2009 (o Fundamental) foi iniciado.

Fundadora:  A APAM também, está ali escrito: discussão do Estatuto e discussão dos parâmetros em meados de 1993. Ela só (se) concretizou em 2000!
Paula Levy:  Em 2000, gente! Eu fui a primeira presidente. A Daisy como vice-presidente. Depois ela foi várias vezes presidente. Anotei aqui, em 1993, (discussão sobre) trimembração do organismo social, tenho isso aqui anotado no meu calendário.

Mães fundadoras do Jardim-Escola Michaelis: Dora Mourão, Elaysie Gonçalves Paulo, Kátia Regina dos Santos, Martha Zuim de Souza, Milca Rabelo Colombo, Rosana Guter Nogueira, Zuleide Pereira
Foto 1: provavelmente turma de 2004
Foto 2: Melissa Paro e Théo, em 2003. Entrada da casa na Glória quando éramos
aproximadamente 20 famílias.
Foto 3: Rosana Guter, Milca Colombo, Paula Levy, Martha Zuim
Foto 4: roda de conversa com a Paula Levy, 2018
Foto 5: carta escrita por Daisy Augusta R.S. Cabreira para o batizado da escola em 30 de
Setembro de 1995. Esta carta foi guardada pela professora Paula Levy e nos foi presenteada
em 2018, em nosso aniversário de 25 anos.