Vivência de Páscoa, pelo Ramo Rudolf Steiner Rio de Janeiro (Transcrição livre da palestra)

Texto: Fernanda Sansão Hallack
Psicóloga, mãe de dois filhos do Jardim-Escola Michaelis.

No livro “Minha Vida”, Rudolf Steiner faz descrições profundas de seus estados de alma. Aos 30 anos, ele estava em Weimer escrevendo o livro “A Filosofia da Liberdade”, editando as obras científicas de Johann Wolfgang von Goethe e trabalhando na aprofundação filosófica da gênese do processo do pensar. Friedrich Nietzsche e Ernest Haeckel eram suas referências teóricas sobre o assunto, contudo não chegavam às mesmas conclusões que lhe eram percebidas como verdadeiras – já que sua percepção do mundo externo era menos concreta do que a vívida dimensão de sua percepção interna e anímica advinda do mundo espiritual.

Assim, o conhecimento científico de Steiner passou a ser diretamente forjado a partir de sua clara percepção do mundo espiritual. Antes, porém, por volta de seus 35 anos, ele vivenciou com intensidade a dúvida se deveria calar ou expor sua cosmovisão suprassensível. Foi nesse contexto que ele se deparou com o mistério do Gólgota (nome da colina onde Jesus foi crucificado), que forneceu-lhe a metáfora capaz de traduzir o espiritual na matéria que se lhe apresentava. Segundo Rudolf Steiner, O Cristo viveu a iniciação no nível mais elevado como ser terreno nas profundezas do rio Jordão.

Até a vinda do Cristo, todos os seres espirituais instruíam a humanidade em seu processo de desenvolvimento, mas não vivenciavam a experiência de nascer e morrer como os seres terrenos. A encarnação do Cristo foi um momento único do cosmos no qual os deuses e a humanidade tiveram a intenção de que um ser espiritual vivenciasse o processo nascimento/morte.

Em quatro palestras que Rudolf Steiner proferiu em 1924, bem no final de sua vida, ele faz correlação do mistério da Páscoa com o culto de Adônis. Um dos antigos mistérios sobre o procedimento de iniciação nos fornece a imagem dos acontecimentos espirituais no mundo. O culto a Adônis pode abrir a nossa consciência para os mistérios da morte e da Páscoa.

Nos tempos antigos, a humanidade comemorava a festa da primavera como uma ressurreição da natureza após o inverno. Essa festa, relacionada ao equinócio de primavera (no hemisfério norte), caia na época da Páscoa. Dessa maneira, torna-se previsível relacionar a ressurreição do Cristo na Páscoa com os mistérios de primavera. Todavia, de fato, para Steiner, a festa Cristã de Páscoa tem muito mais a ver com os mistérios do outono. O autor nos fornece uma definição da Páscoa do ponto de vista de novos mistérios. A Páscoa é a festa da ressurreição e no centro do evento está Cristo Jesus que passa pela morte. A sexta-feira Santa vem lembrar esse fato. Depois o Cristo fica três dias no túmulo, que são celebrados como dias de luto. No terceiro dia, Cristo sai do túmulo. Então há a morte, o repouso no túmulo e a ressurreição do Cristo.

O culto a Adônis, celebrado nos tempos antigos, tem a mesma estrutura da Páscoa. Nele, a imagem do deus da beleza e da força juvenil é o ponto central do mistério. Adônis não só revelava a perfeição em sua aparência como também representava valores de dignidade e grandeza interior do ser humano. Esta imagem de máxima perfeição do humano na Terra foi carregada durante um culto de luta profunda até o mar (ou um lago ou rio) perto da comunidade, ficando afundada na água durante três dias (durante os quais comunidade ficou envolvida por uma calma e seriedade profundas). Após, a imagem foi retirada das profundezas da água e a comunidade entrou em festa com hinos, cantos e danças, louvando a ressurreição do Deus. Nos tempos antigos, este culto despertava as almas dos povos que vivenciavam algo sobre a morte na calma profunda e depois se alegravam com a ressurreição.

Durante esses cultos também aconteciam mistérios de iniciação mais profundos guiados pelos iniciados. Os escolhidos eram levados para um espaço escuro onde havia uma espécie de caixão. Neste, eles se deitavam e vivenciavam a passagem pelo portal da morte durante três dias. Eles então despertavam no terceiro dia, avistando um broto de ramo de planta à sua frente. Isso simbolizava a vida nova brotando dentro deles. Os iniciados então se levantavam do “caixão” com uma nova consciência. Se dizia que “eles foram conhecer a linguagem dos espíritos e uma nova escrita” que significava a possibilidade de enxergar o mundo a partir do espiritual.

Esses cultos aconteciam no outono quando o ser humano vivenciava a morte da natureza e o fenecer das plantas à sua volta. Eles queriam dizer: “Cada homem vai morrer um dia quando o outono chegar para ele. O importante é o luto, entrar em luto profundo quando alguém morrer. Assim, quando sua própria morte se aproximar de verdade, será possível se lembrar do outono, dos mistérios de iniciação e do culto ao deus da beleza, da juventude e da grandeza. Será possível vivenciar as coisas que desaparecem, como desaparecem no outono quando se passa pelo portal da morte durante a vida na Terra. A vida na Terra é passageira; quando um ser humano é retirado dela, ele vive dentro das amplidões do etérico do mundo. Ele percebe como cresce e se transforma de forma que o mundo todo se torna propriedade dele. Em três dias, ele vai viver no grande cosmo. Olhando para a imagem da morte e para o que foi passageiro, desperta-se do outro lado no espírito após três dias, a alma entra na eternidade. O ser humano desperta para nascer do outro lado no mundo dos espíritos”.

Nos mistérios profundos de iniciação, considerava-se que o iniciado havia passado por uma transformação interior, suas forças anímicas haviam sido despertadas para vivenciar o mundo espiritual. Ele tornava-se um “vidente iniciado” que conhecia as profundezas da morte. Esta iniciação despertava a consciência superior dentro da alma. A alma “ressuscitava” numa consciência superior. O corpo físico travava uma iniciação exclusivamente anímica.

Quando Cristo morreu na cruz, os iniciados antigos disseram que Jesus Cristo era um ser solar que “desceu” no momento de seu batismo no rio Jordão e se apropriou do corpo do Cristo. Só um ser solar seria capaz de vivenciar a iniciação passando pelo portal da morte no corpo físico e ressuscitando na Terra. Dizia-se que esta era a iniciação no nível mais elevado.

Os sete dias da Semana Santa (ou semana do mistério, segundo a ciência antroposófica) formam uma unidade de tempo, um todo composto por forças e qualidades planetárias arquetípicas diferentes a cada dia. As imagens dos acontecimentos da vida do Cristo e as quantidades planetárias nos dão elementos para o caminho meditativo desta semana.

No domingo de Ramos, Cristo sai da Galiléia, vai para Jerusalém e é aclamado. É o dia regido pelo Sol, que alude à busca do centramento e à humanização. É o estado em que “somos nós mesmos”, independente das demandas do mundo externo. Aproveitando a força que emana do Sol, gerar a busca pelo estado de alma em que nos reconhecemos e nos diferenciamos do outro.

Segunda-feira, dia da condenação da figueira, quando os discípulos não entendem as palavras de Cristo – que decide por limpar o templo da cidade. O antigo Sol e a antiga Lua vão ficando para trás e ele se depara com as tentações, com a noção do que estava por vir. É o dia regido pela Lua como renovação, ação acordada, desperta, refletida; busca pelas razões que fazem a gente agir.

Terça-feira, Jesus se defronta com sacerdotes e escribas dispostos a provocá-lo para ele perder a razão. Seria preciso lutar através do verbo espiritual (dia do Sermão da Montanha). Remete ao fim da época de sua ligação com a família de sangue, à compreensão de que podia seguir o caminho de uma família espiritual. Dia de Marte. Forças de luta, autenticidade e coragem. Nossas palavras são sinceras e autênticas com nosso interior ou são justificativas e questionamentos vazios? A palavra como espada na luta por autenticidade, o silêncio interior para escuta do “eu”. Busca da palavra com sentido verdadeiro: “a palavra que escuta”.

Quarta-feira, começa verdadeiramente a semana de silêncio. Maria Madalena faz a unção de Cristo, gerando contrariedade em Judas. Prenúncio de sua traição. Dia de Mercúrio: superação do julgamento, abertura de espaço interior antes de julgar. Olhar a partir do ponto de vista e aprendizado do outro. Contemplação e escuta antes de julgar. Forças de fluidez, devoção, cura.

Quinta-feira: Santa Ceia e Lava-pés dos 12 discípulos. Judas se retira para o momento da delação. Regida por Júpiter: grandeza e sabedoria. Buscar sinceridade interior, conexão com o que temos de humano e divino, percepção sincera de como se é – e não como gostaria de ser.

Sexta-feira Santa: Drama da prisão, julgamento e condenação; Via Crúcis, crucificação e morte. Sangue do Cristo entra na Terra. Mistério da ressurreição e da vida eterna. Vênus, paixão e amor universal. Conexão com o sentimento profundo de humildade e aceitação. Receber e aceitar que não se tem o controle de tudo. O que realmente tem valor essencial? A que renuncio? Atentar ao poder da renúncia.

Sábado de Aleluia: Sepultamento de Cristo. José de Arimateia o coloca no sepulcro. Enterra-se o corpo à espera de um milagre. Imagem do Cristo descendo para o reino dos mortos. Saturno: consciência, tempo, profundidade, confiança criadora. Confiança que nos compõe e nos dá uma direção universal plena de sabedoria.

Domingo de Páscoa: Cristo ressurreto aparece para Maria Magdalena. Sepulto aberto sem corpo físico presente. Processo de interiorização do Cristo no corpo de cada ser humano. Ressurreição, abertura ao milagre e à vida, o novo nascendo dentro da gente. Começa o ano.